"Flores envenenadas na jarra.
Roxas azuis, encarnadas, atapetam o ar.
Que riqueza de hospital.
Nunca vi mais belas e mais perigosas.
É assim então o teu segredo.
Teu segredo é tão parecido contigo que nada me revela além do que já sei.
E sei tão pouco como se o teu enigma fosse eu, assim como tu és o meu."
Em cada um de nós habita um abismo, uma zona não tão neutra, onde os conflitos subsistem com pouca luz. Eles abrigam nossos segredos e limites, vontades, potencialidades e dramas, principalmente aqueles que temos de mais secretos e que ainda não nos incorporaram, ou que nunca nos largaram. É onde todos os “se” escolhem ficar, visto ser magneticamente um lugar de idas e vindas.
Sei também que muitos ainda não sabem que os temos, e talvez jamais saibam. Há pessoas que não se questionam, ou não se enfrentam, e passam meio adormecidas pela vida. Mas eu poderia descrevê-lo dizendo que é aonde vimos um quase fundo, e é de lá que voltamos das nossas tristezas saudáveis para a sabedoria de receber mais uma alegria intensa e imperfeita, de perfeitas e limitadas que são todas elas. Ao retornarmos, como na volta de um mergulho, a pressa de chegar à superfície nos obriga a guardar com euforia, a respiração da subida para comemorar a certeza de ter terra à vista. O sopro do alívio de sentir o chão, nos faz engolir no segundo seguinte a paz de avistar novamente tudo o que nos pertence. A consciência do retorno nos liberta soltos, com a autenticidade de quem a tudo possui, para o próximo risco que é viver na imprevisibilidade de todas as nossas marés. Mesmo que vivamos na mais mansa delas, não esqueçamos que não há previsão segura sobre o tempo seguinte. Ele pode mudar em um único instante, e não será necessário pedir-nos permissão.
Martin Luther King que entendia de lutas justas, disse que “...É melhor tentar e falhar, que preocupar-se e ver a vida passar. É melhor tentar, ainda que em vão que sentar-se, fazendo nada até o final. Eu prefiro na chuva caminhar, que em dias frios em casa me esconder. Prefiro ser feliz embora louco, que em conformidade viver.”
É bem verdade que o contexto interfere. As razões também. E quanto a elas, de particulares que são, ofereço os meus ouvidos e respeito a todas. Mas após as descobertas de cada dia, é preciso agir com a urgência de quem tudo sabe. E embora a vontade determine mais do que a sorte sobre o nosso destino, entendo que para exercer a primeira é preciso orientação. De vez em quando, me pergunto:
“-Do que tenho vontade?”
Estou sempre descobrindo, e a partir do que percebo, desenho a minha rota nas condições que tenho para ser feliz agora. E como se tivesse uma bússola, penso que isso me orienta a seguir pelos caminhos entre os bancos de corais que ameaçam o meu casco. O meu desejo é apenas viver feliz, enquanto tento exercitar com simplicidade o equilíbrio entre o que quero e o que preciso ter para me manter navegando pacificamente. Dói um pouco reconhecer-me imersa no meio tempo das fases, aprender com as mudanças que vêm do amadurecimento por navegá-las é sofrido, sobreviver a alguns naufrágios deixa-nos com lembranças profundas, a aceitação do que construímos, ou do que já não podemos, muitas vezes enfraquece-nos, mas a confiança que outras coisas existirão e a fé de que será o melhor, já que é o fruto do que soubemos fazer, nos deve justificar quem somos, ou pelo que vivemos. Tempestades passam. “Olhemos para além das montanhas”, como sugere Nietzsche, mesmo que sejam as montanhas de areia, feito dunas ao vento, que temos dentro de nós.
No meu caso, os meus abismos não me dragam permanentemente ao fundo, embora me tirem o ar em pequenas pausas repositórias. Talvez porque eu não os evite, mesmo que os receie. Quando mergulho em um deles, me ausento nesta extensão até encontrar-me com o que tenho de melhor, e de pior. E neste momento, tento fortalecer o conjunto que sou. Posso dizer que das minhas faces, a pior delas sempre se afoga no sorriso feliz daquela que não sucumbe à falta temporária de luz ou de entrega. E quando vejo que a que sobrevive é esta que respira o mundo livremente, olho para o escuro que há a minha volta e me despeço do meu oceano de dúvidas e sonhos, sem revelar muitos dos meus enigmas. Não sei o que provocará o nosso próximo encontro sempre às escuras, mas me despeço de forma grata, com respeito, cantando Chico para nós...
“Eu bato o portão sem fazer alarde, eu levo a carteira de identidade...e a leve impressão de que já vou tarde.”
...Enquanto iço a minha âncora das águas que já não me pertencem, penso em seguir amando a verdade que me ilumina, sentindo a deliciosa brisa da esperança que me sopra o rosto e me faz lembrar que apesar de tudo, eu sou o porto de chegada. Para sempre, serei a enseada que abriga os meus temporais.
Mona
Crato, Março de 2012.